domingo, 1 de março de 2015

Flor-de-Novembro* 
Parte I - Maria João

      Pequenina ainda achava-se a pessoa mais feia do mundo. Olhava-se no espelho quebrado da velha penteadeira da mãe – penteadeira que parecia ter atravessado séculos – e o que via a assustava tanto quanto uma aparição. Achava o nariz desproporcionalmente grande, o rosto torto, os olhos muito arregalados. Não se via como as outras meninas, nem como as da rua, menos como as da escola, tão lindas em suas tranças e em seus vestidos bordados. Seu cabelo de tão embaraçado, era sem jeito. Nada lhe ornava. Nada lhe ficava bem. Sua roupa, sempre uma calça comprida, quando não, um calção. A mãe fazia faxinas e ficava fora boa parte do dia; logo sobrava pouco ou nenhum tempo para cuidar da filha. Cansada de vê-la desarrumada, com os cabelos despenteados parecendo “ninho de rato”, a mãe resolveu cortá-los bem curtos, àquele modo a que chamamos de “joãozinho”. Ela tinha oito ou nove anos. Junto às mechas que caíam misturavam-se as lágrimas dos olhos premidos da pequena, enquanto suas mãozinhas inquietas percorriam pernas e joelhos e os dentes tensos mordiam os lábios.
– Que é isso, menina? Tá morreno, é? É só cabelo; cresce de novo. Agora vê se aprende a cuidá.
Viu-se no espelho. Agora, além de feia não tinha mais cabelo. A mãe lhe mandou à padaria naquela hora da tarde em que saía o pão quentinho. Os clientes eram atendidos um a um; um a um saíam satisfeitos, e Juliana por ali, perdida entre pernas e prateleiras, sem dizer uma palavra.
– Ô, muleque! O que cê vai querer? – clamava de lá o balconista.
Juliana já se impacientava de tanto esperar, mas não era capaz de reclamar. Um entrava, logo saía com seu pedido; chegava outro, outros tantos adultos mais importantes, ninguém via uma menininha tímida, incapaz de se manifestar.
– Ô, muleque! Ô, muleque! Você que tá aí parado!
Juliana olhou para o cara que gritava tanto e só então percebeu que o balconista estava falando com ela.
– É você mesmo, muleque. Que cê vai querer?
Moleque!? Moleque!? Juliana ficou com a face rubra de vergonha e a mente negra dos piores xingamentos que a sua inocente cabeça conhecia. O que aquele desgraçado estava pensando? Teve vontade de quebrar o balcão de vidro e dizer para aquele idiota que ela era menina, “me – ni – na” .  Quis mandá-lo para o inferno, ou pior, “para aquele lugar”. Mas ao invés disso, falou baixinho:
– Me dá cinco pãozinho.
Nasceu na escola, no dia seguinte, e escapou para a rua, para o balanço, para a praça, para a vida, o apelido que a acompanhou por toda a adolescência: Maria João.
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* Baseado em conto homônimo publicado na antologia do 13º Prêmio Escriba de Contos (2013), de Piracicaba - SP

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